Ensaio

(escrito para o site Músicos do Brasil www.musicosdobrasil.com.br editado para este site)


O Choro é a mais rica e antiga música instrumental do Brasil. Sua riqueza rítmica, melódica e harmônica - que exige um alto nível técnico de seus executantes - sempre fez desse gênero a nossa mais eficiente escola de músicos populares. Impossível relacionar grandes músicos, instrumentistas e compositores da música brasileira sem constatar que muitos vieram da escola do choro ou fizeram longa inserção por ela, aprimorando sua técnica: Radames Gnattli, Villa-Lobos, Guerra Peixe, Francisco Mignone, Pixinguinha, Tom Jobim, Baden Powell, Raphael Rabello, Cristovão Bastos, Mauricio Carrilho, Pedro Amorim, Sivuca, Altamiro Carilho são alguns dos nomes que ilustram bem esse caminho.


Sem ter ainda essa noção sistematizada sobre o gênero, eu e meu irmão Raphael Rabello começamos no choro muito cedo e de forma absolutamente apaixonada. Todas as manhãs de domingo pegávamos o ônibus 498 – Cosme Velho/Penha, rumo às rodas de choro do minúsculo bar Santa Terezinha, na Rua Francisco Enes, na Penha. A roda começava por volta das 10 horas, antes do almoço domingueiro do subúrbio. Encontrávamos ali Abel Ferreira, Zé da Velha, Índio do Cavaquinho, Joel Nascimento, Joir (seu irmão violonista), e outros chorões menos conhecidos, como Seu Berredo, Motinha, Petrônio e Caciporé. As rodas sempre acabavam na casa do Abel ou do Joel. Almoçávamos por lá e só voltávamos para casa bem tarde. Esses encontros musicais no bar Santa Terezinha duraram mais ou menos dois anos, tempo produtivo e inesquecível, quando aprendemos muito. Como a freqüência começou a aumentar, as reuniões foram transferidas para um armazém na outra esquina e, dali em diante, a qualidade daquele encontro musical já não pôde se dar da mesma forma. O apelido Sovaco de Cobra - que Abel Ferreira tinha dado ao bar Santa Terezinha - foi patenteado pelo novo endereço. Lá as rodas começaram a encher tanto que ficaram barulhentas, os músicos passando a tocar sempre alto demais. Sem espaço para dinâmica, perdeu-se a sutileza tão cara ao choro. Repórteres de diversos jornais, revistas e até de emissoras de televisão queriam fazer matérias sobre aquele evento que passou a ser visto como programa "cult". Para quem queria tocar e escutar de verdade, não restou outra opção senão sair de fininho em busca de lugar melhor.


Na zona norte carioca, ali por perto de Mangueira, ficava a casa de Jayme Florence, o célebre Meira, professor de Baden Powell, do meu irmão Raphael Rabello, do Mauricio Carrilho, do João de Aquino e de tantos outros violonistas. Fui algumas vezes junto com Raphael àquelas aulas. Meira me dava um cavaquinho com cordas de nylon para que o som metálico das cordas de aço não encobrisse o solo de violão. O que ele queria mesmo era que eu mudasse de instrumento. Me ensinou a solar no violão, meu primeiro instrumento, o choro Magoado, do Dilermando Reis, pra tocar em duo com o Rapha. Tocávamos muito e o mestre ia aparando as arestas, ensinando os caminhos, ampliando os horizontes. As aulas duravam tardes inteiras e tinha muito papo, ouvíamos histórias que nos traziam ensinamentos ainda mais importantes. Começávamos a entender que tocar implicava em muito mais do que dominar a técnica de um instrumento. Tínhamos entre 13 e 14 anos e Meira 60 e poucos. Foi numa dessas tardes que Meira falou para Raphael que gostaria que ele conhecesse o Mauricio Carrilho. Obedecendo o mestre, Raphael tratou de conhecê-lo e rapidamente o novo amigo passou a integrar Os Carioquinhas, nosso primeiro conjunto. Meu irmão já foi embora tocar pra Deus. Eu e Mauricio continuamos nossa parceria, que rendeu grandes frutos: a Acari Records, a Escola Portátil de Música e a Casa do Choro, trabalhos importantes que realizamos até hoje.


Havia uma dezena de outras rodas que freqüentávamos quando meninos, ávidos por aprender a tocar. Além do Sovaco e do clube Jequiá, na Ilha do Governador (onde mulher não entrava!), aconteciam rodas na casa do Afonso Machado em Botafogo, do pessoal da Velha Guarda em Jacarepaguá (onde fomos levados pelo Deo Rian), do Seu Álvaro Carrilho e da Tia Zélia na Penha, do Jonas do Cavaquinho em Niterói, na casa do S. Elpídio com Dino, Jorginho do Pandeiro, Ronaldo, Rogério Souza e seus irmãos. Tocávamos com mestres como Dino, Meira, Canhoto, Altamiro Carrilho, Abel Ferreira, Copinha, Rossini Ferreira, Canhoto da Paraíba. Costumo dizer que aprendi nessas rodas mais que aprenderia em qualquer academia.


Era nítida a alegria dos músicos veteranos nessas rodas de choro e, anos depois, pude entender a razão. O choro era a música que lhes dava prazer, que propiciava o eterno e desafiador aprendizado, sendo as rodas o seu grande lazer dos finais de semana. Muitos deles eram instrumentistas profissionais que passavam a semana acompanhando cantores e tocando outros gêneros musicais, o que, por mais que também lhes desse prazer, não satisfazia plenamente. Tocar choro era como estar na casa materna, mas naquela época ainda não era possível sobreviver apenas tocando essa música. Acredito que a nossa geração foi a primeira que pôde encarar, ainda que com muita luta, o desafio de fazer do choro a sua profissão exclusiva.


No final da década de 70, estávamos na iminência de fazer vestibular. O oficio já estava escolhido, mas a família queria que fizéssemos um curso superior. Que fosse música mesmo, mas na universidade. Então, me inscrevi para tentar vaga no curso específico oferecido pela UFRJ que, naquela época, preparava os aspirantes ao vestibular de música e ao ingresso na escola da Orquestra Sinfônica Brasileira, e logo me deparei com um sério entrave. Apesar de passar no teste teórico, fui reprovada na entrevista no exato momento em que respondi que meu instrumento era o cavaquinho. Bem cedo tive que entender que só havia dois caminhos para aprender música nas universidades: ou pela escola erudita tradicional ou, na área popular, através do jazz, em Berkeley. Não havia a alternativa que eu procurava para formação em música brasileira. Não existia caminho para nossa turma.


Na época conversei muito com Raphael sobre isso. Muitos outros músicos sentiram e pensaram a mesma coisa que nós e alguns, como Roberto Gnattali, até iniciaram trabalhos visando preencher essa imensa lacuna. Começamos a alimentar o sonho da criação de uma universidade de música brasileira, onde o cavaquinho e outros instrumentos populares pudessem entrar pela porta da frente, e onde o ensino do choro, do samba, do maracatu, do baião, do frevo, do samba de roda, do caboclinho, da congada e de tantos outros gêneros musicais do nosso país fossem ministrados em toda a sua riqueza e complexidade. É mesmo inacreditável que ainda hoje as universidades de música no Brasil formem músicos sem esse aprendizado.  


Dali em diante, fomos seguindo o caminho dos nossos mestres, aprendendo enquanto fazíamos e já nos profissionalizando. No início do ano 2000, Rafael já havia nos deixado e eram passados 25 anos do início da nossa vida profissional. Aparece um menino, aprendiz de violão com a seguinte pergunta: - Vocês não vão a rodas de choro nunca? Como é que a gente pode aprender se vocês, que aprenderam com os mais velhos, não vêm tocar junto com a rapaziada? Vocês vivem dizendo que aprenderam em rodas de choro. E nós, como fazemos? Eu tinha dois filhos na mesma situação. Esses meninos ficam sem ambiente e ainda sem alternativa de aprendizado. Poucas pessoas dessa idade que tiveram acesso a essa música e se interessaram por ela, tinham oportunidade de conhecer seus semelhantes. E sem rodas de choro, como fazer? Lembrei da alegria que eu e Rafael tivemos quando conhecemos Mauricio, Afonso Machado, Paulinho do Bandolim, Celsinho Silva, Pedro Amorim e Ronaldo Souza. Nossos pares.


Dias depois de ter recebido a reclamação do menino do violão, Cirley de Hollanda comenta, numa conversa de botequim, que sua filha, estudante de flauta, passa pelo mesmo problema que os meus: não tem ambiente, não tem como aprender. Gosta de choro, de samba e fica parecendo um extra-terrestre diante dos colegas da sua idade. Cirley era diretora da Sala Funarte e lançou a proposta de criar uma oficina de choro lá, no segundo semestre daquele ano, de setembro a novembro, aos sábados pela manhã. Não tinha verba, remuneração zero. Era mesmo para atender às solicitações e necessidades dos garotos, fazendo rodas de choro como aquelas onde aprendemos a tocar. Muitas oficinas de música já aconteciam em diversas cidades, sendo aquele um formato que agradava e atraía público. Mauricio Carrilho, que também estava na mesa, se animou e topou de cara. Chamamos seu pai, Álvaro Carrilho, o Pedro Amorim e o Celsinho Silva. Dessa forma, tínhamos um regional completo – cavaquinho, violão, flauta, bandolim e pandeiro. Sem nenhuma divulgação, apenas pelo boca-a-boca, apareceram quase 60 meninos para se inscrever. Maurício tinha muito mais experiência didática que todos nós, talento nato para lecionar, além de ser herdeiro direto da escola do Meira. Eu mesma não tinha nenhuma idéia organizada sobre como fazer para ensinar didaticamente o que tinha aprendido apenas por observação e prática.


As oficinas começaram. Formamos vários conjuntos regionais e a garotada estava muito estimulada. As rodas eram boas. Novembro chegou e a Cirley, que estava deixando a direção da Sala Funarte, tratou de pensar em opções para que pudéssemos continuar o trabalho. Fez contato com João Guilherme Ripper, diretor da Escola de Música da UFRJ, que nos convidou para continuar a ministrar a oficina naquela escola. Por ironia, a mesma onde não pude ingressar no início dos anos 80. Maurício se empolgou e começou a organizar o pensamento dinamizando a oficina, criando material didático e chamando outros músicos amigos para dar aulas de novos instrumentos e de leitura musical. Na Sala Funarte, éramos 5 músicos e cerca de 60 alunos. No primeiro ano na UFRJ, passamos a ser 8 músicos e mais de 120 alunos. No segundo, 12 e 200. Hermínio Bello de Carvalho, que nos visitava nas manhãs de sábado desde a Sala Funarte, começa a nos instigar a fazer crescer aquela oficina, a profissionalizar o trabalho, ampliando o número de garotos e até mesmo de cidades atendidos. Hermínio tem longa folha de serviços prestados à música brasileira e já havia desenvolvido o projeto Apostilas Sonoras, que nada mais era que material didático para aprendizes de música. Por fim, batiza a nossa oficina de Escola Portátil de Música, depois de já ter feito com que inscrevessem o projeto nas Leis de Incentivo Fiscal. Como ação combinada, uma empresa passa a nos oferecer patrocínio.


Desse ponto em diante, as salas disponibilizadas pela UFRJ já não comportavam o nosso contingente de alunos e professores. Alugamos uma casa na Glória, onde passamos a ser 18 músicos e 400 alunos. Diversos desses novos músicos/professores, quase todos da geração posterior à dos fundadores da oficina, haviam sido graduados na UniRio em Regência, Licenciatura, Composição etc. Por fazerem parte de uma geração mais nova, tiveram a sorte de encontrar um ensino acadêmico mais arejado e menos conservador. Isso enriqueceu nossa atividade, gerando uma troca muito produtiva e respeitosa de experiências e conhecimentos entre os professores da EPM.


Ainda na casa da Glória, passamos a receber a visita de vários músicos amigos, entre eles Ricardo Ventura, Luiz Otávio Braga e Roberto Gnattali , todos professores da UniRio – hoje a mais importante universidade de música do Rio. Luiz já havia feito diversas oficinas pelo Brasil; Roberto organizou o Conservatório Brasileiro de Música em Curitiba e trabalhou muito pela entrada da música popular na universidade; Rick Ventura era professor de violão e sempre batalhou pela mesma causa, lutando para tirar o ranço conservador do ensino acadêmico. Em agosto de 2005, a convite desses amigos, levamos a EPM para a UniRio. Recebemos o patrocínio da Petrobrás, que nos possibilitou crescer e atender um número maior de alunos. Divulgamos as datas de inscrição e tivemos mais de 1.300 candidatos a vagas. Selecionamos 600 e aumentamos o número de professores para 23.


Criamos o Instituto Casa do Choro que passou a ser o representante legal da Escola Portátil de Música. Ampliamos as ações da EPM fazendo as oficinas volantes em diversas cidades, justificando o “portátil” semeado por Herminio no batismo da escola. Começamos também a fazer o Festival Nacional de Choro, que reúne desde 2004 cerca de 300 alunos em cursos intensivos com duração de 8 dias, oferecendo ainda shows, palestras e, claro, muitas rodas de choro. O número de músicos profissionais estrangeiros interessados em estudar o choro tem crescido cada vez mais nesses festivais, comprovando que a riqueza dessa música tem grande contribuição a dar, dentro e fora das nossas fronteiras. Até 2016, foram realizadas 7 edições desse festival.


No núcleo fixo, como chamamos o trabalho desenvolvido na sede da UniRio,  oferecemos as oficinas de violão (Maurício Carrilho, Paulo Aragão, Luis Flávio Alcofra, Marlon Julio, Glauber Seixas, Lucas Porto e Anna Paes), flauta (Maria Souto, Antonio Rocha e Naomi Kumamoto), cavaquinho (Luciana Rabello, Ana Rabello e Jayme Vignoli), bandolim (Pedro Amorim e Maycon Julio), pandeiro (Celsinho Silva, Jorginho do Pandeiro, Eduardo Silva, Gabriel Leite), percussão e bateria (Oscar Bolão, Marcus Thadeu, Magno Julio), piano (Cristóvão Bastos), saxofone (Rui Alvim), clarinete (Pedro Paes), tuba e trombone (Thiago Osório), trompete (Nailson Simões e Aquiles Moares) e canto (Amélia Rabello). Aulas teóricas de leitura ritmica e harmonia (Bia Paes Leme, Ignez Perdigão e Marcilio Lopes). Criamos ainda a midiateca Hermínio Bello de Carvalho – onde disponibilizamos vasto acervo de gravações e vídeos, com intuito de dar aos alunos o acesso à riquíssima produção da música brasileira que os meios de comunicação e o mercado fonográfico têm deixado de lado.


Foram criadas também duas pequenas orquestras: a Camerata Portátil – formada basicamente de instrumentos de cordas, flautas e madeiras, com característica cameristica - e a Furiosa Portátil, formada por instrumentos de metal, piano, contrabaixo e bateria, com sonoridade que remete aos conjuntos de gafieira. Ambas são constituídas por uma média de 30 músicos entre alunos e professores e têm seu repertório formado por composições e arranjos originais de mestres como Radamés Gnattali, Guerra-Peixe, chegando aos contemporâneos Mauricio Carrilho, Cristóvão Bastos, Pedro Aragão, Jayme Vignoli, Paulo Aragão. Todos os sábados, das 12 às 13 horas, acontece no pátio externo da UniRio o ensaio do Bandão – grupo formado pelo conjunto total dos alunos da escola. Esse ensaio é aberto ao público e vem se tornando um acontecimento musical importante na cidade.


Em 2006, foi firmado um convênio entre o nosso Instituto e a UniRio, através do qual a EPM passou a ser um curso de extensão da graduação de música daquela universidade. O mais importante diferencial do trabalho realizado na EPM consiste no fato dos alunos terem oportunidade de aprender com músicos profissionais, inseridos no mercado de trabalho há 30 anos, em média, aprendendo o ofício na prática e hoje com respaldo também teórico.


E, 2015, uma grande conquista: inauguramos a Casa do Choro - um templo (como os amigos costumama chamar) que hoje reúne, abriga e disponibiliza ao público todas as inciativas desenvolvidas nestes anos todos. Nesta casa tem o Centro de Pesquisa Jacob do Bandolim, hoje com mais de 15 mil partituras catalogadas e digitalizadas, além de acervo iconografico e biografico de personalidades dessa cultura, salas de aula e o Espaço Dino Meira e Canhoto, um centro de convivência para as rodas de choro. As aulas da EPM começam a acontecer também ali e temos ainda o Auditório Radamés Gnattali, um espaço delicioso e único para shows, palestras e encontros. Um sonho realizado e um presente para a nossa cultura! O imóvel tombado nos foi cedido pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro e restaurado com patrocinio do BNDES e da Petrobras e incentivo da Lei Rouanet.


Sem alarde e ao nosso modo, contribuímos para realização desse antigo sonho, quem sabe o embrião da Universidade de Música do Brasil. Acredito que nosso maior desafio hoje seja organizar e sistematizar o ensino de música popular, agregando valores, somando o conhecimento acadêmico aos fundamentos adquiridos em nossa vivência musical, sem perder de vista os fatores que fizeram com que o choro formasse tantos músicos de qualidade ao longo da sua história centenária, transformando-se na verdadeira escola da música do Brasil.


Luciana Rabello